Midiateca

Farmacopéia Popular do Cerrado

Autores

Coordenação: Jaqueline Evangelista Dias e Lourdes Cardozo Laureano.

Ano de Publicação
2010
Categoria
GESTÃO SOCIOAMBIENTAL
Descrição

PREFÁCIO

O Brasil detém em seu território uma inestimável biodiversidade, com cerca de 24 % do total de plantas superiores existentes no mundo. Além desse patrimônio genético, o país destaca-se como detentor de rica diversidade cultural e étnica. O acervo de conhecimentos sobre manejo e uso de plantas medicinais, resultado do acúmulo de conhecimentos e tecnologias tradicionais, passados de geração a geração, compõem a sociobiodiversidade. O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica – cdb, fórum permanente, no âmbito da Organização das Nações Unidas – onu, e que conta com a adesão de 188 países. A cdb tem como objetivos maiores a promoção da conservação da biodiversidade e dos serviços ambientais, o uso sustentável dos seus componentes e a repartição dos benefícios decorrentes do acesso ao patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados. No valioso patrimônio ambiental, as plantas constituem a base de muitos medicamentos sintéticos e a matéria-prima na fabricação de fitoterápicos e na preparação de remédios caseiros, sendo estes últimos provenientes da prática da medicina tradicional. Reconhece-se, portanto, que o Brasil tem em mãos a oportunidade para o estabelecimento de um modelo de desenvolvimento próprio e autônomo, na área de saúde e uso de plantas medicinais e fitoterápicos. Esse modelo deve primar pelos princípios de segurança, qualidade e eficácia na saúde pública e pelos compromissos internacionais assumidos no âmbito da cdb, conciliando desenvolvimento sócio-econômico e conservação ambiental. Assim, considera-se de extrema relevância a aprovação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, publicada por meio do Decreto Nº 5.813, de 22 de junho de 2006, que objetiva ‘Garantir à população brasileira o acesso seguro e o uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos, promovendo o uso sustentável da biodiversidade, o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional.

A Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos deve reconhecer e promover a grande diversidade de formas de uso das plantas medicinais, desde o uso caseiro e comunitário, passando pela área de manipulação farmacêutica de medicamentos, até a fabricação industrial de medicamentos. Essencialmente, a Política Nacional deve respeitar a diversidade cultural brasileira, reconhecendo práticas e saberes da medicina tradicional. Com o objetivo de concretizar a implementação dessa Política Nacional, foi aprovado, por meio da Portaria Interministerial Nº 2.960/08, o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Esse Programa possui entre outras atribuições, a criação de regulamentações direcionadas a salvaguardar, preservar e apoiar conhecimentos, práticas, saberes e fazeres tradicionais e populares relacionados às plantas medicinais, remédios caseiros e demais produtos para a saúde que se estruturam em princípios ancestrais e imateriais. O Programa estabelece que a validação e garantias de uso, eficácia e qualidade desses produtos deverão ser referendadas pela tradição. Define, ainda, que o incentivo, apoio e fomento ao aprimoramento técnico e sanitário de seus agentes, processos e equipamentos, deverão propiciar a inserção dos detentores desses saberes e de seus produtos no Serviço Único de Saúde – sus e nos demais mercados. No momento em que o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos propõe identificar experiências e definir instrumentos de validação/ reconhecimento dos conhecimentos tradicionais para o uso seguro e sustentável de plantas medicinais, nasce a Farmacopéia Popular do Cerrado: um sistema de registro de conhecimentos tradicionais elaborado pelas próprias comunidades. A Farmacopéia Popular do Cerrado, iniciativa da Articulação Pacari, uma rede sócio-ambiental formada por grupos comunitários que praticam a medicina tradicional no bioma Cerrado, é resultado de uma pesquisa popular de plantas medicinais, de autoria de 262 autores sociais, entre raizeiros, raizeiras e representantes de farmácias caseiras e/ou comunitárias. Essa pesquisa popular visa o incentivo à prática da medicina tradicional e salvaguarda dos saberes sobre o uso e manejo sustentável de plantas medicinais. O Ministério do Meio Ambiente reconhece a Farmacopéia Popular do Cerrado como uma proposta a ser multiplicada, como precursora à elaboração de ‘farmacopéias populares nos diferentes biomas brasileiros’, e uma metodologia a ser adotada, de diálogo entre as comunidades e demais setores da sociedade, visando a complementação e respeito entre os diferentes sistemas de conhecimentos: tradicional e científico; com benefícios para todos. Nessa perspectiva, a Farmacopéia Popular do Cerrado poderá também se tornar uma referência para a Farmacopéia Brasileira, à luz de identificar e/ou propor o estudo de plantas medicinais para a elaboração de novos fitoterápicos e a conseqüente inclusão dos mesmos no sus, valorizando a biodiversidade brasileira. É com satisfação que o Ministério do Meio Ambiente apresenta a presente obra à sociedade brasileira, como um instrumento político e técnico, que vem contribuir para a implementação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e da cdb no Brasil.

Maria Cecília Wey de Brito

Secretária

Secretaria de Biodiversidade e Florestas

Ministério do Meio Ambiente


estes seis anos em que trabalhei no Governo Federal, com o tema ‘Acesso a recursos genéticos e proteção de conhecimentos tradicionais associados’, acompanhar e apoiar iniciativas como esta; de resgate e valorização dos saberes tradicionais, do reconhecimento e fortalecimento da riqueza cultural, foi a experiência mais gratificante. A Farmacopéia Popular do Cerrado é o produto de um grande trabalho comunitário, que só foi possível graças à capacidade da ‘Pacari’ em articular as comunidades tradicionais habitantes deste enorme bioma – o Cerrado – e, traduzir os diferentes saberes e realidades, permitindo o real exercício de cidadania a essas comunidades.

 ... o trabalho da tradução visa criar inteligibilidade, coerência e articulação num mundo enriquecido pela multiplicidade e diversidade. A tradução não é simplesmente uma técnica. A tradução é um trabalho dialógico e político. Tem igualmente uma dimensão emocional, porque pressupõe uma atitude inconformista por parte do sujeito, em relação aos limites do seu próprio conhecimento ou da sua própria prática e a abertura para ser surpreendido e aprender com o conhecimento e a prática do outro. (Boaventura de Sousa Santos).   

Os diversos encontros realizados, nos quais várias comunidades trocam experiências; discutem o que são conhecimentos tradicionais, onde estão, como circulam, como são mantidos e produzidos, que papel exercem dentro das comunidades; além de evidenciarem e fortalecerem este patrimônio cultural, ressaltam o círculo virtuoso, que deve ser priorizado pelas políticas públicas: a proteção dos direitos das comunidades sobre seus conhecimentos e a conservação do ambiente onde vivem. Isso permite, sobretudo, a produção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e o uso sustentável da biodiversidade.


Apresentação

Embora a atual legislação sobre acesso a conhecimentos tradicionais associados, patrimônio genético e repartição de benefícios – Medida Provisória 2.186- 16/01, explicite que os conhecimentos tradicionais associados são patrimônio cultural nacional, ainda há muito que se fazer para que esses sejam valorizados e respeitados por toda a sociedade brasileira: as políticas públicas devem de fato ser implementadas, para que assim, se possa garantir a conservação da biodiversidade e permitir que as comunidades continuem a utilizá-la, perpetuando seus saberes.

No atual ambiente institucional, a publicação destes saberes é uma faca de dois gumes: por um lado, resgata os conhecimentos, sistematizando e validando-os; por outro, torna-os mais disponíveis para toda a sociedade, que nem sempre tem reconhecido sua origem e seu valor. A Medida Provisória 2.186-16/01 reconhece os direitos das comunidades locais e indígenas de decidir sobre a utilização dos seus conhecimentos. Esse direito, ainda pouco reconhecido, é mais fácil de ser exercido e respeitado quando os conhecimentos ainda estão sob a guarda das comunidades e essas, por sua vez, conhecem seus direitos. Uma vez publicados, os conhecimentos tradicionais cairiam em domínio público, após um determinado intervalo de tempo, conforme estabelece o direito autoral? Ou esta regra, do direito de propriedade intelectual, não seria aplicável? Temos defendido que os direitos morais e patrimoniais das comunidades sobre seus conhecimentos devem ser considerados inalienáveis (não podem ser comercializados), irrenunciáveis (as comunidades não podem deixar de ter esses direitos) e imprescritíveis  (perduram para sempre). Mas este, entretanto, não é o entendimento que se tem prevalecido; pois, na verdade, muitos consideram que esses direitos devem ser semelhantes aos direitos de propriedade intelectual, que podem ser objeto de negociações e têm tempo determinado de validade. Os conhecimentos tradicionais são produzidos e transmitidos de maneira muito diferente dos conhecimentos científicos, gerados nas universidades. Assim, eles não devem ser tratados de modo igual, mas sim de maneira adequada ao contexto em que são gerados. Os direitos de propriedade intelectual são usados para garantir ao autor do conhecimento científico alguns direitos, como o de autoria e o de explorar economicamente o conhecimento gerado. Em geral, enquanto esses direitos não são concedidos, o conhecimento fica guardado com o pesquisador. Já os conhecimentos tradicionais são, na maior parte das vezes, produzidos coletivamente, transmitidos e disseminados oralmente. Desse modo, a proteção dos direitos das comunidades sobre seus conhecimentos requer criatividade. Como as próprias comunidades reconheceram neste trabalho, os conhecimentos tradicionais não têm dono, têm herdeiros. Por isto, é necessário compreender a dinâmica de cada comunidade com relação aos conhecimentos que produzem, antes de impor uma forma de proteção que possa impactar negativamente a produção e reprodução desses saberes. Esta foi a preocupação que motivou a Articulação Pacari a procurar os Ministérios do Meio Ambiente e da Cultura para que fosse avaliada a pertinência de registrar a Farmacopéia Popular do Cerrado no Livro de Registro dos Saberes, conforme previsto no Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000. Este processo está em curso e, independentemente da sua conclusão, é essencial que todos aqueles que tenham acesso à Farmacopéia Popular do Cerrado a reconheçam como um bem coletivo das comunidades tradicionais do Cerrado, que não pode ser utilizado sem o seu prévio consentimento livre e informado. Ao finalizar esta apresentação, destaco um dos resultados deste trabalho: a abertura de um espaço de diálogo que possibilitou a compreensão, por parte das comunidades, de várias políticas públicas diretamente relacionadas a elas e, por parte de setores do governo, da realidade das comunidades. Sem esta ponte, de duas mãos, não é possível exercer a cidadania. Esse resultado ganha importância ainda maior, no momento em que o Executivo Federal está para finalizar Projeto de Lei que deverá, após aprovação pelo Congresso Nacional, substituir a Medida Provisória 2.186-16/01.

Cristina Azevedo

Coordenação Técnica

Departamento do Patrimônio Genético

Secretaria de Biodiversidade e Florestas

Ministério do Meio Ambiente

Junho de 2008

Tipo de publicação
Livro
Local da publicação
Goiás - GO
Nº da edição ou volume
1ª edição
Editora
Articulação Pacari - www.pacari.org.br
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