RESUMO A presente tese aborda os conflitos etnoecológicos na gestão de unidades de conservação da natureza implantadas em terras indígenas no Brasil, submetidas ao regime jurídico de dupla afetação. A multidimensionalidade desse fenômeno é estudada considerando uma abordagem qualitativa interdisciplinar, ancorada em uma base epistemológica sistêmico-complexa, que combina o enfoque analítico de gestão de bens comuns com o enfoque de análise e transcendência de conflitos. A hibridização de enfoques analíticos visa ampliar a compreensão dos condicionantes estruturais dos conflitos que confrontam interesses de agentes públicos ambientais e das comunidades indígenas nas áreas sob dupla afetação, além de identificar potenciais de transformação relacionados aos arranjos institucionais das políticas públicas existentes. Em uma perspectiva sistêmica, a problemática local dos conflitos nas unidades de conservação se vincula a dimensões e totalidades mais abrangentes, que remetem o estudo à escala planetária da crise socioecológica global, enraizada no modelo civilizatório ocidental. Os pactos internacionais em favor do meio ambiente, impulsionados pela ideia de desenvolvimento sustentável, adotaram e fortaleceram a política mundial de áreas protegidas como uma estratégia de enfrentamento ao modelo de desenvolvimento econômico global, predominantemente predatório da natureza e socialmente excludente. Nesta perspectiva, com base em uma abordagem conceitual socioecológica complexa, as áreas protegidas são interpretadas como empreendimentos ecológicos produzidos na modernidade, que funcionam como sistemas abertos, realizando trocas permanentes com o ambiente, para além dos seus limites e objetivos específicos de conservação da natureza em si. O avanço do conhecimento técnico-científico e a mobilização de organismos internacionais, civis e governamentais alavancaram mudanças conceituais e normativas, provocando uma ruptura de paradigma na política de áreas protegidas, cuja origem foi marcada historicamente pela exclusão social. O Brasil internalizou essa evolução por meio de um enfoque ecossistêmico, com a integração formal de terras indígenas, territórios quilombolas e outros espaços especialmente protegidos, no âmbito do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e do Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas. A mudança de paradigma possibilitou ampliar os esforços de conservação da diversidade biológica e sociocultural em escalas mais abrangentes da paisagem. O fenômeno da sobreposição territorial entre unidades de conservação e terras indígenas ocorreu ao longo do tempo de forma aleatória e não intencional, atribuído à desarticulação das políticas ambiental e indigenista do governo. A recente instituição da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, protagonizada pelos próprios indígenas, evidenciou o estreito entrelaçamento dessas políticas. O reconhecimento oficial do papel e da contribuição das terras indígenas para o alcance de metas nacionais e globais de conservação da biodiversidade não foi suficiente para promover a transformação dos conflitos nas áreas sobrepostas até o momento. Empiricamente, revela a persistência de um padrão de interação institucional do estado, historicamente autoritário e excludente dos povos indígenas, tanto no processo de tomada de decisão, quanto na repartição dos benefícios gerados pelas unidades de conservação, mesmo em áreas submetidas ao regime jurídico de dupla afetação. O processo de transformação e transcendência dos conflitos que rivalizaram os agentes públicos e as comunidades indígenas no Parque Nacional Monte Roraima (RR) ilustra, de forma exemplar, as contradições entre o formalismo institucional e a realidade local. Além disso, revela as ambiguidades de um sistema de gestão pública das unidades de conservação, que se mostra deicitário e anacrônico em níveis transescalares, mas que também oferece espaços de manobra para experiências inovadoras que a ação coletiva consegue fazer prosperar. Palavras-chave: Unidades de conservação. Terras indígenas. Conlitos etnoecológicos. Gestão de bens comuns. Regime de dupla afetação.
ABSTRACT This thesis addresses the ethnoecological conlicts in the management of nature conservation units located in indigenous lands in Brazil, subjected to the dual affectation legal regime. The multidimensionality of this phenomenon is studied from an interdisciplinary qualitative approach, anchored on a complex epistemological basis, which combines the analytical approach of managing commons with the analysis of conlict transcendence. The hybridization of analytical approaches aims to broaden the understanding of the structural constraints of conlicts that confront the interests of environmental public agents and indigenous communities in areas under dual affect, as well as to identify potential for transformation related to the institutional arrangements of existing public policies. From a systemic perspective, the local problematic of conlicts in conservation units is linked to broader dimensions and totalities, which refer to the planetary study of the global socioecological crisis, rooted in the western civilizing model. International environmental pacts, driven by the idea of sustainable development, have adopted and strengthened world policy on protected areas as a strategy to confront the predominantly predatory and socially exclusionary model of global economic development. From this perspective, based on a complex socioecological conceptual approach, protected areas are interpreted as ecological enterprises produced in modern times, which function as open systems, making permanent exchanges with the environment, beyond their limits and speciic conservation objectives. The advancement of technical and scientiic knowledge and the mobilization of international civil and governmental organizations leveraged conceptual and normative changes, causing a paradigm rupture in the politics of protected areas, whose origin was historically marked by social exclusion. Brazil has internalized this evolution through an ecosystem approach, with the formal integration of Indigenous Lands, Quilombola Territories and other specially protected spaces within the National System of Nature Conservation Units and the National Strategic Plan for Protected Areas. The paradigm shift has made it possible to broaden efforts to conserve biological and sociocultural diversity on wider landscape scales. The phenomenon of territorial overlap between Conservation Units and Indigenous Lands occurred over time in a random and unintentional way, attributed to the disarticulation of the government’s environmental and indigenous policies. The recent institution of the National Policy for Territorial and Environmental Management of Indigenous Lands, carried out by the indigenous themselves, evidenced the close intertwining of these policies. Oficial recognition of the role and contribution of indigenous lands to the achievement of national and global biodiversity conservation goals has not been suficient to promote conlict transformation in overlapping areas until this time. Empirically, it reveals the persistence of a historically authoritarian and exclusionary pattern of institutional interaction of the State, both in the decision-making process and in the distribution of beneits generated by Conservation Units, even in the areas subject to the dual affectation legal regime. The process of conlicts transcendence that opposes public agents and indigenous communities in the Monte Roraima National Park (RR) illustrates very well the contradictions between institutional formalism and empirical reality. In addition, it reveals the oficial system ambiguities regarding the management of protected areas, which is deicient and anachronist at trans-scalar level, but also presents room of maneuver for innovative experiences that collective action may thrive. Keywords: Protected areas. Indigenous lands. Ethnoecological conlicts. Commons management. Dual affectation legal regime.
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